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André Gonçalves Fernandes
Coluna "Lanterna na Proa"

Eutanásia: livre para todos os públicos

André Gonçalves Fernandes

A Bélgica está prestes a aprovar o permissivo legal para prática da eutanásia de crianças com doenças terminais e, por consequência, tornar-se o primeiro país do mundo a acabar com o limite de idade para a eutanásia, mesmo sabendo das naturais limitações do discernimento humano nessa fase da vida e da pressão psicológica que a decisão impõe a um ser ainda tenro existencial. A prática eutanásica, assim como a abortiva, não me engana: uma vez legalizada, tende a expandir-se e com argumentos cada vez mais sofisticados.

A Bélgica é um dos países mais liberais na questão da eutanásia, permitida para adultos mesmo sem necessidade de doenças terminais. Aliás, nesse macabro assunto realmente não sei quem é mais liberal: na Holanda, a partir dos doze anos, a eutanásia é permitida legalmente. Em Luxemburgo, a eutanásia é possível para menores inválidos e para maiores que tenham deformações estéticas. Mas, na França, recentemente, a eutanásia foi rechaçada no senado por ampla maioria. Pelo visto, nesse assunto, vejo que não prego no deserto...

Entender suficiente apenas o desejo subjetivo de morrer por parte de alguém para lhe conferir o direito à eutanásia e gerar, de imediato, um dever a um terceiro, exigiria partir de uma harmonia preestabelecida entre desejos próprios e alheios. Parece, ao contrário, preciso assumir juridicamente uma determinada teoria do justo que vá além da convicção de que, para ser titular de um direito, basta ele seja desejado com alguma veemência libertária.

Quando se propõe a legalização da eutanásia, a questão dos cuidados paliativos tornou-se secundária e, na prática, endossa-se, de modo mais ou menos consciente, um autêntico direito à morte, que poderia chegar a exigir a obrigatória colaboração de terceiros. Não é à toa que, em algumas propostas legais, entra em cena a objeção de consciência, mas, desta vez, para admiti-la como causa de objeção frente a um dever jurídico.

Na questão da eutanásia, desde há muito deixamos o âmbito da liberdade individual e já adentramos no reconhecimento de um suposto direito, a ser prestado pela rede pública de saúde. O debate deixou uma direção e seguiu o rumo da existência de um direito de que outro nos mate, já que somente partindo do dever de matar outrem tem sentido estabelecer exceções por via da objeção de consciência. É o verso do anverso chancelado utilitariamente pela lei.

Essa alteração de perspectiva dissimula uma espécie de “paternalismo mortis causa” – complicado pelo difícil desfecho, ante uma doença terminal (agora já não mais necessária) – entre o consentimento do paciente e a percepção com que se vive a enfermidade em seu entorno. Assim, dar por líquido e certo que o paciente não tem condições de suportar uma situação intolerável seria um notável exercício de “compaixão”.

O problema da validade do consentimento de um paciente, terminal ou não, une-se a este novo elemento – a compaixão da lei – que impossibilita estabelecer com nitidez quem acabará, na prática, exercendo este suposto direito em jogo. Além da morte propriamente dita, a questão radical repousa na ausência de uma dimensão transcendente que, em última análise, impede a busca de sentido na convivência com a dor, a qual se transforma em fato gerador de indignidade.

Todavia, esse debate ainda caminha, nas entrelinhas, pela mudança do conceito de vida: deixaria de ser meramente biológico e assumiria outros atributos, como o de uma vida digna ou uma vida de qualidade. Assim, privada destes qualificativos, desapareceria o cerne do direito à vida propriamente dita e, paradoxalmente, a legalização da eutanásia seria o símbolo de uma “nova” cultura da vida.

Quando a vida está atrelada à condição biológica, o elemento de referência é de segura fiabilidade. Certamente, não se chega à igual conclusão quando os elásticos conceitos de qualidade de vida ou dignidade de vida assumem tal lugar. Ou qualquer outro que venham um dia a inventar. E, com menores envolvidos, como no caso belga, soma-se, ainda, uma certa desistência moral, já que são pais que apresentam – aos próprios filhos, como uma espécie de imagem simbólica de Saturno – a morte como uma alternativa. A cena dispensa maiores comentários.

Com efeito, o debate da eutanásia resulta mais agudo no plano moral, já que as diversas concepções não biológicas de vida geram discrepâncias insolúveis, do que no plano jurídico, pois bastaria a garantia de um mínimo ético que evitasse a controvérsia e impedisse que, sob as aparências de comiseração, a dissimulação assumisse o lugar de outros impulsos inconfessados no ato eutanásico. E, a partir de agora, liberado para todo o público belga. Com respeito à divergência, é o que penso.

Eutanásia: podemos viver sem isso

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ANDRE GONÇALVES FERNANDES, Post-Ph.D. Juiz de Direito e Professor-Pesquisador. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Mestre, Doutor e Pós-Doutorando em Filosofia e História da Educação pela UNICAMP. Juiz de direito, titular de entrância final em matéria cível e familiar, com ingresso na carreira aos 23 anos de idade. Pesquisador do grupo PAIDEIA-UNICAMP (linha: ética, política e educação). Professor-coordenador de metodologia jurídica do CEU Escola de Direito. Coordenador Acadêmico do Instituto de Formação e Educação (IFE). Juiz instrutor/formador da Escola Paulista da Magistratura (EPM). Colunista do Correio Popular de Campinas. Consultor da Comissão Especial de Ensino Jurídico da OAB. Coordenador Estadual (São Paulo - Interior) da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Membro do Comitê Científico do CCFT Working Group, da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP), da Comissão de Bioética da Arquidiocese de Campinas e da Academia Iberoamericana de Derecho de la Familia y de las Personas. Detentor de prêmios em concursos de monografias jurídicas e de crônicas literárias. Conferencista e autor de livros publicados no Brasil e no Exterior e de artigos científicos em revistas especializadas. Membro Honorário da Academia de Letras da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Titular da cadeira nº30 da Academia Campinense de Letras.

E-mail: agfernandes@tjsp.jus.br

Publicado no Portal da Família em 08/02/2014

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