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Lágrimas de adolescente ou a eficiência dos deficientes (*)

Evaristo Eduardo de Miranda (**)

Um grupo de adolescentes da APAE estava varrendo e limpando uma área pública de Campinas na região dos Amarais. De repente, um deles começou a reclamar e a manifestar uma indignação muito forte. Eu deixei o banco onde estava sentado e me aproximei. Ele me explicou, com lágrimas nos olhos, as razões da sua revolta: copos, cigarros e papéis lançados ao lado de um grande cesto de lixo. Esse jovem, portador da síndrome de Down, achava aquilo um absurdo. Toda semana ele enfrentava a mesma situação.

Num primeiro momento imaginei que a sua condição genética explicava uma reação quase desmedida: chorar pelo lixo jogado fora do lixo. A sensibilidade especial, dessas pessoas especiais, podia e devia explicar aquela reação tão emotiva. Tentei argumentar, sem negar sua razão de indignar-se. Prometi ajudar a identificar o responsável por aquele descuido e convencê-lo a ser mais atento. Seus colegas de trabalho, iguais a ele em tudo, também intervieram. No fim o rapaz trocou o pranto por um sorriso e voltou a garimpar, como se fossem tesouros, papéis e detritos na grama e na calçada.

Ainda no local, observando e pensando no comportamento das pessoas com relação ao lixo e à cidade, comecei a pensar na falta de racionalidade e na deficiência comportamental de nossos cidadãos. Não é somente um problema social. Trata-se de uma prática a qual todas as classes sociais parecem dar-se com prazer: o desrespeito das vias públicas, o lançamento de lixo através da janelas dos carros, como se estivessem circulando em aterros sanitários e não nas proximidades da UNICAMP ou do centro da cidade. Conheço pessoas que já me disseram não fazer isso nos Estados Unidos, mas aqui é diferente... Mudam de país, mudam de comportamento!

Não há fiscalização, nem varrição que dê conta de tamanha deficiência educacional e comportamental. É caso de chorar, sobretudo quando as pessoas têm a sua disposição cestos e latas de lixo e insistem em ignorá-los, lançando seus detritos pelo chão. Essa carga cotidiana de detritos, além de sujar a cidade, ameaçar a saúde e favorecer a proliferação de vetores de doenças, acaba entupindo a rede de escoamento das águas de chuva, obstruindo bueiros, entulhando córregos e provocando inundações. A nossa deficiência individual gera ineficiência coletiva e amplia a debilidade de nossas infra-estruturas sanitárias. E tudo isso é parte de pessoas que valorizam a competição e o desempenho como critério supremo para avaliar tanto comportamentos e relacionamentos, como economia e política.

Parece que perdemos nossa capacidade de reagir diante desse problema. Existem coisas piores e mais graves diriam alguns. É verdade, mas não é desculpa. É nosso dever educar e dar o exemplo. Nosso torpor leva à indiferença e ao agravamento da situação. É no mínimo paradoxal que, enquanto o cidadão normal esbanja vandalismo ambiental e inconsciência citadina, um jovem deficiente demonstra sua capacidade - felizmente ainda não perdida - de indignar-se diante de tamanho absurdo.

Sentadinho no meu banco, vendo a alegria e a dedicação daqueles rapazes da APAE limpando a rua e os jardins, num trabalho de Sisífo, eu comecei pensar que o choro do portador da síndrome de Down era mais do que justificado. Era de justa medida diante de tanto descaso e desrespeito dos chamados "eficientes" pela casa onde vivem.


(*) Artigo publicado no Correio Popular, Campinas, SP, em 02/05/1997.

(**) Doutor em ecologia, professor da USP, pesquisador do Núcleo de Monitoramento Ambiental da EMBRAPA, conselheiro da Fundação Síndrome de Down e autor dos livros "Água, Sopro e Luz - Alquimia do Batismo" e "Agora e na Hora - Ritos de passagem à Eternidade" (Ed. Loyola).

 





 

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