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No Diário de Saramago:
um Humanismo Latente
Parte II

Alípio Maia e Castro

[volta]

Necessidade da Ética

"Um homem bom (...) é, no fim de todas as contas, o único que vale a pena ter sido"(48). Estas palavras tão singelas e tocantes, escreveu-as Saramago por ocasião do falecimento de um amigo que vivia "sempre, sempre, irradiando amizade"(49), sugerindo-nos discreta e descontraidamente em que direção devemos procurar o humanismo da sua Ética. E, acrescentando a esta sugestão o que o escritor declara quanto à luta em prol da Ética, parece-nos traçado o quadro fundamental do seu pensamento neste ponto: com efeito - escreve - "a necessidade da luta mantém-se: (...) a superficialidade e a indiferença éticas são as regras de ouro da modernidade"(50).

Se de alguma forma queremos sistematizar a sabedoria ética, inevitavelmente fragmentária, dos Cadernos de Lanzarote, o que de mais seguro se nos afigura, à cabeça de todos os princípios e comportamentos, é a idéia de respeito do homem. Parece pouco, mas não é: pressupõe, por um lado, o conhecimento da natureza humana, da verdade do que é ser homem, nomeadamente o conhecimento dos tão decantados direitos humanos; e, se assim me é lícito dizê-lo, produz, no convívio entre os homens, a solidariedade e a justiça.

De fato, é-nos dito que só "começaremos a ser, enfim, humanos entre humanos" uma vez que tenhamos ultrapassado o confronto entre a "intolerância" e a "tolerância", tomada esta última na acepção de "uma intolerância (...) temerosa de ver-se denunciada aos seus próprios olhos", porquanto tem "um olhar, que desejaria ser compreensivo, mas que, muitas vezes, vai buscar a equívocas formas de compaixão e de remorso a sua débil razão de ser" e é "claramente frágil, assustada, indecisa (...), incapaz de levar às conseqüências extremas o seu perplexo anseio de justiça, que seria renunciar a ser o que tem sido - simples permissão, aparente benevolência - para se tornar em identificação, igualdade, isto é, respeito"(51). Passando aqui por alto o que há de impreciso nesta noção de "tolerância", confundida com uma "intolerância" que ainda não deixou "cair a máscara das boas intenções" e está "sujeita à tentação de subir ao (...) fatal degrau" em que aquela - a intolerância propriamente dita - "olha com ódio a confusão dos estrangeiros de raça ou de nação que a rodeiam"(52), frisemos desde já que a solução encontrada por Saramago - e encontrada como "consciência" e "sentimento" propulsores de "profunda e quem sabe se definitiva humanidade" - é "o lugar de reunião (...) da fraternidade"(53).

A "fraternidade" aqui proposta realiza-se efetivamente, na ótica saramaguiana, mediante o "respeito" devido ao homem. Não se pode duvidar de que o egrégio escritor pretende com isso preconizar e atingir "uma existência humana social e eticamente digna"(54). O que não se vê é como respeitar o homem se não se sabe o que é o homem e, por conseguinte, a sua dignidade, "sem perder todo o sentido da humanidade". Ora, aqui está um ponto em que, pelo visto, é apenas latente o humanismo de Saramago, tornando-se pouco nítido o vínculo que une a Ética à razão e que teremos de reconsiderar mais adiante.

Entretanto, é patente a indignação com que Saramago se insurge contra o nosso "tempo", que "faz da ausência de valores um valor e da hipocrisia pública e privada uma regra"(55). Não é menos evidente que o escritor atribui o alastramento do mal na nossa sociedade a uma "anestesia do espírito", cujas "fáceis variantes (...) se chamam frivolidade e brutalidade"(56); e que portanto está a exigir, para não "murchar em rotinas e ceticismos", entre outros "triunfos", "o do bem sobre o mal"(57).

As páginas do seu Diário trazem-nos mesmo propostas concretas de conteúdo ético, entre as quais nos permitimos salientar as seguintes: "acabar de vez com a fome no mundo, porque isso já é possível"; "definir éticas práticas de produção, distribuição e consumo"; "criar um novo sentido dos deveres da espécie humana, correlativos do exercício pleno dos seus direitos"; "racionalizar a razão, isto é, aplicá-la de modo simplesmente racional"(58).

Assim, num quadro de conceitos aparentemente emaranhados, colhe-se uma linha de orientação: pela razão, há de chegar-se à "fraternidade"; nesse "lugar de reunião" que é a "fraternidade", cumpre "respeitar" o homem.

Nesta ascensão ética a que, à míngua de melhores palavras, chamamos linha de orientação, surge logo de início o escolho de uma "razão" débil, cuja debilidade transluz numa espécie de retraído ceticismo. De fato, não obstante a sua "ambiciosa idéia" "de fazer retornar o romance ao canto original, de convertê-lo em suma de conhecimento"(59), esta capacidade cognoscitiva esbate-se na sua convicção de que "arte e literatura são 'leituras'", menos ainda, "leituras de leituras, infinitamente", pois, "não podendo saber o que é, realmente, a realidade, o que vamos fazendo são meras 'leituras dela'"(60); e tem todo o ar de desmoronar-se em ceticismo absoluto quando, mais tarde, depois de tentar minorar ou suavizar o radicalismo de um crítico do seu Ensaio sobre a Cegueira, Saramago sustenta que, "apesar de tudo, não creio que o mal seja o motor que faz bater o coração humano", mas para logo a seguir acrescentar: "Embora me pareça igualmente que não é o bem que o faz bater..."(61).

Sem nos atrevermos a atribuir a Saramago aquela "anestesia do espírito" de que, com essa percuciente expressão sua, falamos mais acima, não logramos esquivar-nos à impressão de tornar-se inviável a edificação de uma Ética que, logo nos alicerces - nos alicerces do conhecimento da natureza humana - cambaleia e hesita, ao deparar-se com qualquer desumanidade, para imediatamente concluir, sem rodeios nem cambiantes, que todos "somos feitos metade de indiferença, metade de ruindade"(62).

Não se nega razão a Saramago, concordando com ele em que pode haver perversidade em certa "sujeição e humilhação" - precisamente naquela em que o homem se sujeita ao mal, porventura sentido ou pressentido dentro de si. Mas, daí até proclamar que "a única maneira de salvar a dignidade do ser humano na terra" esteja do lado do "espírito que nega" "a reverência e o acatamento" indiscriminadamente(63), - vai uma longa distância que não passa pela mais condescendente joeira do senso crítico.

Entretanto, não deixa de ser gratamente desconcertante a enérgica segurança com que este observador espírito crítico condena desvios éticos indiscutíveis, tais como o consumismo e o egoísmo. Assim, por exemplo, "olhando a cara fingidamente satisfeita dos europeus", julga "que da crise profunda, crise econômica, mas também crise ética, em que patinhamos, é que poderão (...) vir a nascer as necessárias idéias novas (...) principiando (...) por recolocar o cidadão, um cidadão enfim lúcido e responsável, no lugar que hoje está ocupado pelo animal irracional que responde ao nome de consumidor"(64). E, a propósito das omissões e indecisões dos Estados europeus em face da mortandade de Sarajevo, não se faz rogar para escrever que "a Europa política ensinou aos povos da Europa o refinamento do egoísmo"(65).

Também nos é grato observar o denodo ético com que fustiga a "abdicação" perante o moderno problema das drogas. Com uma lucidez cortante e contundente equipara a difusão "legal" das drogas à disseminação das armas, nomeadamente à existência intocada "das chamadas minas antipessoal (...), enterradas por aí (...), traiçoeiramente à espera de que alguém lhes ponha um pé em cima"(66). É com sarcasmo certeiro e intransigente que se pronuncia contra essa "abdicação": "Se não foste capaz de cortar a cabeça ao dragão, pede-lhe por favor que te deixe aparar-lhe e polir-lhe as garras. Ele to agradecerá"(67).

É ainda decerto o "respeito" à vida humana que o faz vociferar contra a distribuição dos bens, objetivamente injusta, no mundo inteiro. Revê com indignação desgostosa a frieza dos números que alinha a 23 de outubro de 1996, para atestar a miséria do "nosso maravilhoso século XX", com "1300 milhões de pessoas que vivem abaixo do nível de pobreza absoluta" e suas seqüelas gritantes(68). É nesse "respeito" que parece enraizar-se a sua aspiração sincera, muitas vezes reafirmada, a "muitos triunfos, o do bem sobre o mal, o do justo sobre o injusto, o da liberdade sobre a necessidade"(69). É aí, pelo visto, que há de localizar-se a origem das suas algum tanto desanimadas invectivas contra a "intolerância e a crueldade"(70). Diríamos até que procede desse "respeito" certa "rebelião", como que religiosa contra todas as "nossas ofensas (...) à idéia de humanidade"(71). Não é senão conteúdo ético, que da mesma fonte mana, aquilo a que ele chama "consciência (...) da responsabilidade de cada ser humano perante si próprio e perante a sociedade, tomada esta, não como uma abstração cômoda, mas na sua realidade concreta de conjunto de indivíduos e de pessoas"(72). E Saramago sabe o que diz: mesmo que não tenha "nada de extraordinário", toca "fundo as consciências"(73). Pode dizer sinceramente que "os gritos do mundo chegaram enfim aos ouvidos dos escritores" - aos dele também -, tomando por "monstruoso", tanto como "o compromisso pessoal e exclusivo com o dinheiro e o poder", aquilo que se chamou 'compromisso pessoal exclusivo com a escrita’(74), pois "o mundo (...) também espera que eles (os escritores) não se esqueçam de ser cidadãos de vez em quando"(75).

Há, pois, no pensamento de Saramago, uma Ética ou, se se prefere, um humanismo ético: do respeito à vida humana, esse pensamento chega à justiça e à solidariedade. Não chega a formular todo o caminho que conduz a natureza humana ao seu bem próprio, ao seu fim. Não nos diz, por exemplo, como dizia Almeida Garrett - muito longe de ser clérigo sermonário ou intelectual católico -, que "ninguém foi ainda infeliz com a virtude", de modo que é "para a virtude e para a razão, e preparando-o para felicidade" (o homem, entende-se) que se deve dirigir a "arte de formar homens, a que mais nos assemelha à Divindade"(76). Quer dizer: Saramago não nos chega a explicar - nem se vê motivo para que o faça num simples Diário - em que consiste exatamente a sua "santidade da vida" humana, que cumpre respeitar. Não nos esclarece sobre os predicados inteiros do homem que, por ser bom, é feliz e torna felizes os outros. Não obstante, encontramos nos Cadernos de Lanzarote, num quadro relativamente explícito, o perfil do homem bom que, por assim dizer, o apaixona. Refiro-me ao que escreve a 10 de dezembro de 1995, que é o esboço da natureza humana em tensão e tendência para o seu fim racional, isto é, para a sua perfeição, para a sua plenitude. Aí se encontra, parece-nos, o que se poderia chamar coroamento de toda a estrutura do seu edifício ético, ou melhor, o que mais sobressai da sua expressividade estética. Só lendo essas linhas dispomos dos elementos indispensáveis para definir o seu conceito de "respeito" devido ao homem. "Se a mim - escreve Saramago - me mandassem dispor por ordem de precedência a caridade, a justiça e a bondade, o primeiro lugar dá-lo-ia à bondade, o segundo à justiça e o terceiro à caridade"(77). Esta "ordem de precedência" constitui, para Saramago, "ordem da razão"; ordem essa destinada a fazer da "relação humana" uma relação "conjuntamente caritativa, bondosa e justa"(78). Entretanto, se indagamos de que maneira a razão realiza a sua "obra", parece responder-nos peremptoriamente que, garantida a bondade, já está garantida a justiça bem como a caridade; e que, garantida "a justiça justa", já se dispõe de "caridade suficiente". E logo se vê que a "razão" reserva à caridade o lugar ínfimo: "A caridade - diz ele - é o que resta quando não há bondade nem justiça".

Como quem justifica essa hierarquia, Saramago sustenta que, dentre essas três virtudes, a caridade é "a mais fácil e a mais comum"; entende que "a bondade" é "rara"("tão rara!"); e, para terminar, afirma que "a justiça (...) a ambas deverá gerir" e "é na razão que se há de encontrar"(79).

Que a justiça se há de encontrar na razão, não há a menor dúvida. Para não irmos mais longe, em toda a tradição do mundo ocidental está presente o unânime sentir, em cujos termos a razão, guiada pela prudência (virtude eminentemente intelectual), é que reconhece os direitos e os deveres da pessoa humana (o que é seu, o que lhe é próprio), bem como o seu fundamento. Mas não é menos indubitável que a caridade, conceito sabidamente cunhado pelo cristianismo, vai mais longe e mais acima que a justiça e, tal como o cristianismo a apresenta, livre das deformações popularescas, é o que há de mais difícil, ultrapassando as forças meramente naturais do homem, pois é como amor divino que o cristianismo a inculca(80).

Se retomamos o que dissemos acima sobre a relação entre bem e fim, se portanto consideramos bom o homem que atinge, enquanto vivência máxima do seu fim, o dom de si mesmo, logo compreendemos que quem é bom é aquele que se realiza, esquecendo-se de si, e é feliz por isso. Neste sentido, só logra ter bondade o indivíduo que ama. A bondade assim alcançada redunda numa atitude dadivosa eficiente. Implica uma resposta ao valor das pessoas. E ou eu me engano muito ou é isso o que Saramago pensa quando, ao delinear o relativo valor das obras e dos seus autores, escreve que "cada vez me vem interessando menos o que as obras dizem e mais o que as pessoas são"(81).

Amor à verdade, sentido da vida

Desde a Antigüidade que ouvimos repetir, com uma monotonia algum tanto pessimista e enfadonha, que "errar é humano". Nem sempre, porém, damos tento da luminosidade positiva que se esconde por trás do adágio: o que revê nas paredes da sua luz mortiça não é senão a capacidade cognoscitiva do ser humano, já que a possibilidade de cometer erros pressupõe a capacidade habitual de conhecer a verdade, de entrar em contato com ela: não se pode efetivamente aferir o erro a não ser que se admita o conhecimento da verdade; o erro mede-se em confronto com a luz da verdade conhecida.

Nestes termos, ainda que se nos afigure supérfluo, torna-se oportuno vincar o fato de que o erro, de per si, não é conhecimento, mas exatamente o contrário: ao cometer um erro, o homem deixa de entrar em contato com a verdade das coisas reais; e, no entanto, esse mesmo erro denota a tendência e mesmo a capacidade para conhecer, representando como que a face oculta do conhecimento. Afinal, se, ao referir-nos ao erro, falamos acertadamente de um conhecimento falhado, é porque se nos depara o fenômeno do conhecimento, concomitante ou anterior ao erro cometido. Poderíamos talvez dizer que o erro é um impulso cognoscitivo truncado, em que o ato cognitivo, apesar dos pesares, ainda subsiste. Em linguagem metafórica, dir-se-ia que o reconhecimento do erro é como o despertar de um sonho: o homem que, ao acordar, cai em si e abre os olhos para a realidade que o cerca, não realiza um ato patológico ou excepcional, mas precisamente um ato normal e saudável.

Assim, melhorada a fórmula do adágio antigo, diremos: nada de mais humano que o conhecimento. O homem é um ser cognoscente (já o dissemos acima). Apetece-lhe conhecer tudo e cada vez mais. Sobe às montanhas mais altas, vai às geleiras do pólo, embrenha-se na floresta tropical, atreve-se a navegar entre os astros, por entre longínquos espaços siderais. Graças a esta ânsia de saber e saber cada vez mais, progridem as ciências. Todos os humanistas citam a seu sabor, como divisa muito sua, a conhecido sentença de Terêncio: "Homo sum; humani nihil a me alienum puto", homem sou e nada do que é humano julgo alheio(82). E se há algo no homem que não lhe é "alheio" ou estranho, é antes de mais o seu desejo de saber, de conhecer tudo o que é, quer dizer, tudo o que é inteligível e que, se é inteligível, é porque é (porque é ser, permita-se a tautologia).

Sublinhe-se entretanto que o que nas coisas - nos seres - há de inteligível (ao alcance da inteligência humana) é precisamente o que se denomina a verdade (ou parcela de verdade) das coisas reais (verdade ontológica). Desta maneira, o impulso para conhecer corre parelhas com o amor à verdade ou, se se prefere, com a tendência para a verdade, própria da razão.

Ora, se no Diário de Saramago, no "mistério" da sua "sombra", algo há de humano - e de humanismo - é, mais do que qualquer outra coisa, a sua paixão pela verdade. É com suma satisfação que, neste sentido, transcrevemos as suas palavras: "Quem tiver acompanhado com alguma atenção o que venho escrevendo desde Manual de Pintura e Caligrafia saberá que os meus objetivos (...) apontam para uma definição final que pode ser resumida, creio, em apenas quatro palavras: meditação sobre o erro"(83). Para que não restem reservas ou perplexidades sobre a nossa afirmação, é mister ler o que vem a seguir: "A fórmula corrente - meditação sobre a verdade - é, sem dúvida, filosoficamente mais nobre, mas sendo o erro constante companheiro dos homens, penso que sobre ele, muito mais que sobre a verdade, nos convirá refletir"(84).

Talvez alguém possa supor que se encobre nesta formulação uma forte dose de pessimismo. O que não pode todavia negar-se é que Saramago tem a perfeita consciência de só poder denunciar o erro aquele que conhece - ou julga conhecer - a verdade. E é decerto neste sentido que cumpre entender o seu repto: "Alguém é capaz de imaginar aquela que seria a maior das revoluções, a revolução de dizer simplesmente a verdade?"(85). Tudo leva a admitir, por isso, que, a despeito de qualquer sinal aparentemente contrário, no fundo do "mistério" de Saramago, palpita, em face da verdade, pelo menos o início da única atitude propriamente humana, a do amor, pois - já o notava São Gregório Magno - "quem não ama a verdade, é porque ainda a não conhece"(86).

No dia 30 de dezembro de 1996, referindo-se a um livro do escritor Baptista Bastos, classificou-o como "ato de amor", mas precisamente e sobretudo de "amor à verdade"(87), ao ver o autor "exigente nos juízos" e "capaz ainda de indignar-se e de amar"(88). Quer-nos parecer que, por entre a singela escassez dos fios que entretecem esta observação, brilha o humanismo - o amor - com que Saramago se indigna tantas vezes perante o erro: não há quem não adivinhe, nos enfados de Saramago, talvez mesmo nos seus sarcasmos, uma busca da verdade limpa; e, nesta perspectiva, é que há de procurar-se um entendimento da sua "meditação sobre a verdade", pressuposta nos escárneos ou invectivas contra o erro, isto é, na sua tensa "meditação sobre o erro".

Impõe-se perguntar de passagem até que ponto é legítimo atribuir "amor à verdade" a um escritor que vive da "ficção". Afinal, e para empregarmos os termos de Saramago, no ficcionista "sempre habita, latente, alguma animadversão contra a imobilidade dos fatos"(89). À parte a evidência de nem sempre serem imóveis os fatos, antes pelo contrário, sobretudo os fatos que se passam no íntimo do homem, essa "animadversão" não faz boa companhia à abertura da veracidade, por natureza acolhedora de tudo aquilo que transcende o sujeito cognoscente e constitui o objeto do conhecimento. De resto, é bem sabido que a "ficção", enquanto obra de arte, implica sempre uma "deformação" da realidade intuída pelo artista(90). Um romance histórico não é História nem uma biografia romanceada perfaz uma autêntica biografia. Ninguém o discute. Mas isso não quer dizer que a "deformação" da obra de arte não espelhe uma verdade humana, embora vista de certo ângulo. Já se sabe que, em última análise, a obra de arte só tem valor na medida em que é bela, mas também só é bela na medida em que for verdadeira, portadora de uma parcela da verdade, muito embora não exija a historicidade dos fatos narrados e menos ainda a sua cronologia linear.

E, se se pergunta - se o perguntamos com Saramago - qual a verdade trazida pela ficção, o seu Diário responde-nos que "uma ficção (...) é, acima de tudo, a expressão ambiciosa de uma parcela identificada da humanidade, isto é, o seu autor", "a pessoa invisível, mas onipresente, do autor"(91). Pessoa "invisível", porque, além do mais, "o que o autor vai narrando nos seus livros não é a sua história pessoal aparente", "não é isso a que chamamos o relato de uma vida (...), mas a sua vida labiríntica, a vida profunda"(92). Isto, mesmo que, ao exprimir-se ou ao exprimir a verdade, esta leve consigo "uma parcela de falsidade (...)", ao menos "por insuficiência expressiva das palavras usadas"(93).

Quando, a esta luz - à luz do Diário, afinal -, se tenta desvendar "a vida profunda" de Saramago, logo vemos sobressair a sua indignação contra a falsidade, contraforte do seu amor à verdade, ainda que por vezes frágil, quebradiço, pois, talvez à conta de se debruçar mais sobre o erro, não logra dizer-nos a verdade inteira sobre a vida. Esse é sem dúvida o caso do Evangelho, de que Saramago se serve, conforme ele próprio o diz, para expressar o seu "desespero" em face do que se lhe afigura "dogma absurdo" ou "crença irracional"(94). Esse desespero é uma variante da indignação, indignação que, aqui, com certeza procede de uma visão profundamente subjetivista da verdade evangélica ou porventura das fontes intermediárias em que a encontrou já deformada. Não se pode esquecer, de resto, o que o próprio Saramago afirmou sobre O Evangelho segundo Jesus Cristo: trata-se - diz ele - "da vida que inventei para Jesus"(95). Poderia dizer-se até que talvez o seu "desespero" provenha da "invenção". Com efeito, "talvez (...) o pior mal (...) esteja (...) nas palavras, nas palavras que falseiam, nas que mentem, nas que enganam. Essas palavras que nos impedem de ver o outro lado das coisas, e também o outro lado das palavras"(96). Assim concluía uma vez Saramago um artigo escrito para um jornal espanhol. Numa conclusão cujas palavras, se assim nos é lícito dizê-lo, sugerem que - no caso do Evangelho - Saramago se enganou, vítima do "pior mal" do "desespero" que marcou a alma de Judas e dos fariseus. Com mentirosa sonegação da verdadeira mensagem de Cristo, em contraste com a paz que fortaleceu e sossegou o ânimo dos apóstolos, fiéis ao seu mestre e à sua verdade. Aqui, estamos em plena "sombra", à beira do mistério íntimo de Saramago, que o Diário não decifra.

Como quer que seja, o que acabamos de evidenciar, isto é, a sua indignação perante a hipocrisia - apanágio dos fariseus do Evangelho - brilha com cores fortes um pouco por toda a parte nos Cadernos de Lanzarote: e há de ser através dessa indignação que, em todo o caso, havemos de tentear o "mistério" que pertence à vida íntima do escritor. A honradez manda que se anote, neste contexto, a afirmação rotunda e afiada de Saramago: "Há um momento em que compreendemos que todo o fingimento é infame"(97). O que significa, entre outras coisas, que nem sempre estamos no momento de reconhecer o nosso possível e até involuntário "fingimento", sempre, porém, "infame". Mas, por outro lado, essa afirmação afiada quadra brilhantemente ao conselho dado aos políticos, por ocasião de um Congresso de 1990, recorrendo a uma citação de Juan de Mairena: "...deveis fazer política (...) só me atrevo a aconselhar-vos que a façais a rosto descoberto; no pior dos casos com máscara política, sem disfarce de outra coisa: por exemplo, de literatura, de filosofia, de religião..."(98). E decerto ressuma na advertência que aponta em 10 de maio de 1996, já parcialmente citada: "A necessidade de luta mantém-se: a hipocrisia domina por toda a parte..."(99).

Por conseguinte, não há dúvida de que Saramago batalha contra a hipocrisia e a mentira, em harmonia com a sua "meditação sobre o erro". Ponto é sabermos se essa batalha satisfaz as exigências de uma inteira luta pela verdade. Barafustar nas trevas de um túnel não é o mesmo que iluminar com lanterna os trilhos da via férrea que conduzem à saída. Só sai das trevas, da escravidão das trevas, quem acata o rumo dos trilhos iluminados. Na vida da razão que conhece não pode deixar de haver uma aquisição, a conquista intencional de algum objeto que a transcende e, na mesma medida, se lhe impõe.

Aderir a razão à realidade das coisas é que é caminho bem trilhado, se se quer atingir alguma verdade que, ou admitimos estar presente nas coisas reais, preparada, digamos, pela sua inteligibilidade, ou forçados somos a dar por encerrada na subjetividade do sujeito cognoscente, definitivamente condenado à escravidão imanentista da sua própria pobreza singular e isolada.

Como diz um poeta brasileiro contemporâneo:

A mentira é dura,
não a verdade - macia escravatura
que liberta,
antepondo a consciência à censura
e o dever ao dever com prazer,
e o prazer com o dever ao puro prazer.(100)

Parafraseando-o, sem menoscabo de qualquer outra intenção que tenha sido a do poeta, poderíamos aqui arriscar a suposição de que Saramago anseia por libertar-se, submetendo-se à "macia escravatura" da verdade a que a razão o inclina, içando-o acima da "anestesia do espírito", tantas vezes nascida, no mundo pós-moderno, da busca prevalente do puro prazer ou da anônima "censura" de não poucos conformismos culturais de duvidosa consistência, tais como o relativismo absoluto ou qualquer utilitarismo de novo cunho.

Se, em tomando a sério a sua "meditação sobre o erro", não cerceia a interrogação racional que pergunta "quem somos"(101), Saramago não pode deixar de preocupar-se com a descoberta do sentido da vida, lançando-se em demanda do "porquê" e do "para quê" da existência humana. E o fato é que ele se preocupa, com uma preocupação que, surpreendida em feridas abertas espontaneamente ao longo dos cinco volumes do Diário, atesta a sinceridade e coerência de uma única e inconfundível autoria, não obstante, enquanto mero "romancista" nos ter dado por uns momentos a impressão de eludir o problema de saber "donde vimos e para onde vamos", problema que constitui as duas "grandes questões humanas"(102), condensadas numa só, a do sentido da vida precisamente.

É de Santo Agostinho a observação segundo a qual "há três espécies de homens que merecem ser repreendidos e detestados. A primeira, é a dos que (...) julgam saber o que ignoram; a segunda, é a dos que sabem que não sabem, mas não buscam a verdade pelo caminho em que se pode encontrar; a terceira, é a dos que reconhecem a sua ignorância, mas sem se preocuparem com remediá-la"(103). Na "sombra" que de si próprio nos oferece Saramago nos seus Cadernos não vemos nem ignorância presunçosa, nem ignorância paralisada e satisfeita: o que vemos é um inquieto desbravador de caminhos, talvez nem sempre certeiros e fecundos, mas que não deixam de ser busca da verdade.

Em 1993, encontramo-lo em "deambulações inquietas pelos caminhos da ilha, com o seu quê de obsessivo", numa "ansiosa procura" não se sabe "de quê"(104). Mas em 1997, essa "procura" parece tirar o velame que a encobre: "Chegado a este ponto - observa Saramago - uma dúvida inquietante me assalta: que sentido tenho eu ? " (105). O cuidadoso autor do Diário, que entrevisto pelas frestas das suas interrogações, nada tem dos que "merecem ser repreendidos e detestados", já anos antes reconhecia que, mesmo o mais elementar do amor à vida, "o amor por nós próprios", pressupõe que alguém nos vá ajudando "a encontrar para a existência um sentido suficiente"(106). É-nos dito, assim. simplesmente, que não é a solidão o caminho que conduz ao conhecimento desse sentido. E o tempo não passa em vão: uma coisa tem sentido na medida em que tem um além, um "para quê". Ora, é isso precisamente o que o escritor parece vislumbrar, feitas e refeitas as suas "deambulações". Com efeito, em 1996, admite que "a verdadeira vida" pergunta "obsessivamente" "aonde pretendem ir" os homens "sem ideais nem esperança, sem uma idéia de futuro, que dê algum sentido ao presente"(107). Aliás, em novembro de 1994 já nos dava azo a indagar se esse mal esboçado "futuro", perante o corte da morte, não teria de ser um além de imortalidade: "Por mim" - diz de si para si, rechaçando em face da morte de um amigo falecido aos 88 anos, o corriqueiro dito consolador de que "tinha vivido já a sua vida" - "penso que nunca acabamos de viver a nossa vida"(108). Não haverá neste pensamento a certeza de se prolongar a vida humana para além da morte ou, pelo menos, a certeza - certeza equivalente - de nunca ela atingir a plenitude sobre a terra passageira? O escritor convida-nos quase sem querer a um diálogo em que julgamos ir ao seu encontro, dizendo-lhe que mais que a vida vale a verdade sobre a vida, ou - o que é o mesmo - que nada é a vida, se não se sabe o que ela é - se não se sabe, sem tirar nem pôr, o seu "para quê", que pressupõe um bom "porquê". Sim, julgamos ir aqui ao encontro de um homem que, numa época em que a questão da verdade tem sido preterida pela questão da utilidade e do prazer, campeando nela o relativismo absoluto, se ergue muito acima dos espíritos estreitos, mesmo que o tachem de louco ou alienado (em todos os sentidos). Isto faz-nos lembrar a resposta dada ao promotor por certo preso, depois de prolongada greve de fome numa prisão de Leningrado: "A verdade é para mim mais importante que a vida". Foi tão chocante aos olhos do promotor esta resposta que - assim no-lo narra Soljenítsin - "no dia seguinte, Smélov (o preso) foi levado (...) ao manicômio, onde a médica lhe comunicou: -Suspeitamos que você sofre de esquizofrenia"(109).

Para dar tão-somente um testemunho dos mais célebres, permita-se-me recordar o que diz Malraux pela boca do seu personagem Gisors: "No fundo, o espírito só pensa o homem no eterno". Gisors, no baldado intuito de esquivar-se à angústia que esse pensamento lhe provoca, ousa afirmar que "não se deve pensar na vida com o espírito, mas com o ópio". E, imaginando-se por instantes "liberto de tudo, mesmo de ser homem, acariciava com reconhecimento o cano do cachimbo..."(110). Saramago não é dos que quer substituir o pensamento pelo ópio, não figura entre aqueles que, sucumbindo à "anestesia do espírito", sonham que a vida acaba com a morte, sem nunca o conseguirem de todo em todo, porque o espírito tende para a imortalidade, para a eternidade.

Só que, nestes termos, o seu amor à verdade acaba por desembocar no problema religioso, que afinal se cifra na questão da transcendência da vida.

 

continua


 

(48). Cadernos II, 1995, p. 123, 22.V.

(49). Cadernos II, 1995, p.122, 22.V.

(50). Cadernos IV, 1997, pp. 130 e s.

(51). Cadernos V, 1998, pp. 37-39, 7.II.

(52). Cadernos V,1998, p. 38, 7.II.

(53). Cadernos V, 1998, p. 37, 7.II.

(54). Cadernos I, 1994, p. 91, 3.VIII.

(55). Cadernos V, 1998, pp. 117 e s. 5.VI.

(56). Cadernos IV, 1997, p. 117, 20.IV.

(57). Cadernos IV, 1997, p.266, 12.XII.

(58). Cadernos III, 1996, p.218, 14.XII.

(59). Cadernos I, 1994, p. 169, 6.XII.

(60). Cadernos II, 1995, p. 72, 10.III.

(61). Cadernos V, 1998, p.23, 21.I.

(62). Cadernos IV, 1997, p. 84, 14.III.

(63). Cadernos IV, 1997, pp. 215 e s., 8.IX.

(64). Cadernos II, 1995, p.92, 15.IV.

(65). Cadernos I, 1994, p. 104, 18.VIII.

(66). Cadernos IV, 1997, pp.92 e s.,26.III.

(67). Cadernos IV, 1997, p. 93., 26.III.

(68). Cadernos IV, 1997, p. 240, 23.X.

(69). Cadernos IV, 1997, p. 266, 12.XII.

(70). Cadernos V, 1998, p. 127, 5.VII..

(71). Cadernos V, 1998, p. 201, 9.XI.

(72). Cadernos II, 1995, p. 129, 27.V.

(73). Cadernos I, 1994, p.142, 13.X.

(74). Cadernos I, 1994, p.162, 25.XI

(75). Cadernos II, 1995, p. 235, 18.XI.

(76). Da Educação, Obras Completas XX, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1904, p.23

(77). Cadernos III, 1996, p.215, 10.XII.

(78). Cadernos III, 1996, loc. cit.

(79). Cadernos III, 1996, loc. cit.

(80). Veja-se I Jo 4, 7: "A caridade vem de Deus". Veja-se também S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q.2,art. 5, ad primum: "o homem está obrigado a muitas coisas a que não pode chegar sem a graça reparadora: assim, no caso do amor a Deus e ao próximo; e de modo semelhante, no da obrigação de crer os artigos da fé" (ad multa tenetur homo ad quae non potest sine gratia reparante: sicut ad diligendum Deum et proximum; et similiter ad credendos articulos fidei). Note-se ainda, pelo significado do autor, o que observa Leão Tolstoi, Guerra e Paz, livro III, 3a parte, 32: "Amar um ser querido é amar com um amor humano, mas amar o inimigo é amar unicamente com um amor divino".

(81). Cadernos IV, 1997, pp. 20 e ss.

(82). Publius Terentius Afer, Heautontimaroumenos, I.

(83). Cadernos II, 1995, p. 45, 10.II.

(84). Cadernos II, 1995, loc. cit.

(85). Cadernos III, 1996, p. 168, 2.VIII.

(86). Homilias sobre os Evangelhos, livro I, hom.l4, 3, in fine, in Obras Completas de S. Gregório Magno, B.A.C., Madrid, 1958, p.590.

(87). Cadernos IV 1997, p. 270.

(88). Cadernos IV, 1997, loc. cit.

(89). Cadernos V, 1998, p. 195, 5.XI.

(90). Veja-se, por exemplo, Antônio Soares Amora, Teoria da Literatura, Editora Clássica Científica, 5a ediç., São Paulo, 1964, pp. 52 e s.

(91). Cadernos IV, 1997, p. 194, 9.VIII.

(92). Cadernos IV, 1997, p. 195, 9.VIII.

(93). Cadernos IV, 1997, p. 193, 9.VIII.

(94). Cadernos II, 1995, p. 38, 7.II.

(95). Cadernos I, 1994, p. 148, 26.X.

(96). Cadernos IV, 1997, p. 101, 30.III.

(97). Cadernos II, 1995, p. 251, 13.XII.

(98). Cadernos I, 1994, p. 95, 8.VIII. Em espanhol no original.

(99). Cadernos IV, 1997, p. 130.

(100). Gabriel Perissé "De Veritate" (poema inédito), jan. de 1993.

(101). Cadernos I, 1994, p. 169, 5.XII.

(102). Cadernos I, 1994, p. 169, 5.XII.

(103). De utilitate credendi, ad Honoratum, in Obras de S. Agustín, B.A.C., vol. IV, Madrid, 1956, pp. 821 e s.

(104). Cadernos I, 1994, p. 130, 17.IX.

(105). Cadernos V, 1998, p. 136, 23.VII.

(106). Cadernos I, 1994, p. 109, 25.VIII.

(107). Cadernos IV, 1997, p. 267, 12.XII.

(108). Cadernos II, 1995, p. 241, 29.XI.

(109). A. Soljenítsin Arquipélago Gulag, Livraria Bertrand e Círculo do Livro, Lisboa - São Paulo, 1975, I Parte, cap. XII, p. 453.

(110). André Malraux, A condição humana, Edições "Livros do Brasil", Lisboa, s/d, 7a. parte, p.252.

 

 

 

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